Em um passado remoto e durante séculos ele foi reverenciado pelos povos da floresta, que das suas águas claras recebiam dádivas em forma de peixes. Eram outros tempos, tempos em que sua generosidade era de uma normalidade quase óbvia e os xikrins subiam e desciam pelo sei leito caudaloso num estilo de vida livre que se perpetuava por centenas de gerações.

Com a chegada dos brancos os índios acabaram subindo a serra, se valendo da proteção da floresta para preservar a sua maneira de viver, mas o rio continuou a sua doce rotina de levar peixe ao garimpeiro, ao ribeirinho, aos pequenos colonos e posseiros que desbravavam essa parte do mundo esquecida.
Era o “Rio de águas rasas”, cantado em verso pelos indígenas nas noites de lua e nos rituais, ainda serpenteava pelas encostas cobertas da mais densa mata e ainda nascia no coração da floresta, lá onde hoje se conhece como Água Azul. Como uma mãezona, acolhia igarapés e regatos, como o Gelado, Gal, Sossego, Sapucaia, Plaquê, Verde, Ilha do Coco e mais um sem número de pequenos fios d’água que desembocavam no seu leito.

O que o rio não sabia era que aqueles homens enrijecidos pelo trabalho duro nem de longe pareciam com os antigos habitantes, que cuidavam da sua perenidade, com a consciência que dele dependeriam as futuras gerações. Nem por um breve momento desconfiava que a devastação estava no DNA e no modo de vida dos chegantes que à sua maneira, cada um contribuiria para a sua agonia. O posseiro e o colono praticariam o desmatamento, retirariam a sombra das árvores das suas margens e destruiria as matas ciliares. Por outro lado, em busca do ouro, os garimpeiros revirariam grotões e afluentes, assoreando os leitos, reduzindo os caminhos das torrentes a pequenas trilhas. No afã do enriquecimento rápido, misturariam mercúrio ao cascalho, que por sua vez voltaria aos afluentes, numa equação perfeita para a mortandade dos peixes e a contaminação da água. Para não ficarem atrás, os ribeirinhos dos pequenos burgos que surgiam à sua margem utilizavam-no como depósito de detritos, colchões velhos, pneus, materiais plásticos, carcaça de geladeiras, entulho, esgoto não tratado e muita sujeira.

E o rio foi adoecendo de tristeza, minguando e se tornando um rio de águas rasas no sentido mais exato da palavra, de modo que a sua antiga limpidez foi substituída pela coloração amarelada que se conhece hoje.

Nos seus estertores, de vez em quando ele emitia pedidos de socorro, que eram solenemente ignorados. Um dos mais lembrados foi o de 2009, quando irrompeu pela cidade adentro numa uma enchente descomunal. Depois disso, ele voltou para a sua trilha e continuou correndo preguiçosamente rumo ao Itacaiunas.

Voltou a ser um rio na UTI, às vésperas da morte, no qual se atravessava a pé nos períodos de estiagem, de modo que a sua arrebentação não foi por vingança ou para castigar uma cidade que continua o poluindo, jogando toda sorte de imundície no seu leito, mas um desesperado pedido de socorro.

Convenhamos, para um rio que empresta seu nome à cidade, vez por outra ainda enche a canoa do pescador de peixe, sem falar no fornecimento de água para quase 300 mil pessoas, pedir um pouco de respeito até que não é algo assim tão fora de propósito.

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